8.5.06

1

1.
Dissipam-se-me as dúvidas. O meu lugar é ainda aqui. O meu lugar físico, diga-se. Porque, quanto ao resto, ainda não sei se aqui pertence. Porque me olho e estou, de facto, neste lugar. Aqui. Sou nos lugares onde me sento, no chão que piso, nos toques nas pedras a que procedo. Sou, e não me engano. Sou, e não me iludo de que este é o meu lugar.
A minha estratégia é respirar. Encher-me de lugares, de paisagens, de mundanidades. O meu caminho é aceitar que vivo, e participar. A minha fábula é o que, aos meus olhos, acontece. Essas histórias são a minha história. Oiço a sua música e respiro com ela. Porque os acordes todos estão dentro de mim, e eu neles. Porque há horizontes que construo fora de mim. Fora de mim porque são meus. Tudo. Tudo é meu enquanto eu vivo. Mas só enquanto isso acontecer. Porque depois... depois não sei mais. Vou emprestar o meu corpo à terra, e dela, talvez, fazer nascer um fruto da minha casta. Igual a tantos outros. Mas isso, só quando estiver cansado. Ainda bebo água com sofreguidão quando há calor. E, se isso acontece, é porque ainda não valeu a pena morrer. O corpo o dirá, um dia.

2

2.
Ainda ontem abri a janela e reparei no mundo. Quão belo é o mundo. Tem árvores. E floresta, quando as árvores são muitas. Tem ondas. E mar, quando as ondas são muitas. Tem vento. E tempestades, quando é muito o vento. Tudo isto é o mundo, todas as pedras! Tantas pedras, incontáveis, num espaço tão pequeno (aos olhos do Sol). O Sol é muito maior. Mas não tem pedras. Nem, tampouco, vento. Mas não interessa. O que importa é que é Sol, e que está vivo, e que tem uma luz radiante e quasiterna – quase eterna, leia-se. Amo o Sol como amo as coisas da terra. Digo as coisas, e não as pessoas. Que fique bem claro. Amo as coisas e pronto, não se fala mais nisso. Mas há coisas de que não gosto. O pôr do Sol. Porque não é dia todos os dias? Esta é a coisa de que não gosto. Também gosto só um poucochinho do frio. Porque as mãos não podem andar cá fora, em liberdade. Ficam frias e depois não consigo escrever.
Agora não está frio e, por isso, as minhas mãos escrevem mais depressa enquanto o Sol não se vai embora por hoje. Não queria que o Sol se fosse embora. Eu também não me vou embora dele.

3

3.
Apetece-me ler um pouco. Ler é bom. Porque há lá, dentro dos livros, mundos novos e sóis que nunca se põem. Podemos ler de noite e ver o Sol. Isso é muito bom. Aquece-nos a cara quando ficamos com sono. É.
Eu não queria dizer mais nada. Mas as palavras nascem de uma vontade que eu não conheço e que talvez me domine, sem eu saber. Não conheço essa vontade e não a domino, da mesma forma que o mundo não domina o vento e o calor. Senão conhecia-se a si próprio.
Ainda me apetece ler um bocadinho. Mas penso naquelas pessoas a quem vai apetecer ler aquilo que agora escrevo, o que eu escrevo, um dia. Penso nelas e só nelas. Porque não sou egoísta. E porque gosto de escrever, assim como gosto das coisas e gosto só um poucochinho do pôr do Sol. O pôr do Sol é vadio. Nunca tem casa. Não se aninha numa montanha porquê? Também deve ter frio, como as minhas mãos. Talvez por ser muito grande. Tudo o que é grande deveria sentir frio, porque o vento bate mais e a chuva molha em maior quantidade. Eu não quero ser grande.
Não gosto muito do frio. As minhas mãos não falam, mas eu sei que têm mais frio do que eu. Às vezes gostava de ser as minhas mãos e andar lá, por cima dos braços esticados e mergulhar nas arcas velhas quando se anda à procura de um cobertor mais macio que nos tape à noite. Elas conhecem um mundo diferente do meu. Elas, as minhas mãos, sentem a textura das coisas quando tocam só de leve, quase sem sentir. Conhecem outras mãos de outros corpos quando há um aperto de mão. Ah. Elas conhecem tanta coisa. Que eu nem imagino. Imaginar é bom. Por isso eu gosto das minhas mãos. Se não fosse por isso eu gostava delas na mesma.

4

4.
Alguém me fala do tempo. E eu pergunto: «O que é o tempo?». O tempo deve ser algo de bom, porque toda a gente fala dele. E deve ter qualquer coisa por dentro para poder funcionar. O tempo funciona? Talvez quando faz Sol ao meio-dia seja tempo de o tempo ser alguma coisa. Não sei. Não sei muitas coisas e, por isso, pergunto. E as pessoas, às vezes, chateiam-se e dizem que eu sou muito ingénuo e que não digo coisa com coisa. Se eu não dissesse nada o que diriam elas de mim? Chamar-me-iam «pedra». Sim. Porque as pedras não dizem nada. São apenas pedras. E isso já é muito. E eu, sou apenas eu.
Não compreendo os homens. Andam como loucos (porque é assim que os loucos andam, como os homens), sempre a olhar para uma máquina que trazem no pulso. E, quando olham, dizem: «estou atrasado», «já é tarde», «já não tenho tempo». Mas o que é ter tempo? Há alguém que tenha o tempo. Se houver, tenho que lhe falar e dizer que isto assim não pode ser; que as pessoas não andam de boa saúde, porque não têm tempo; ou então digo-lhe que o distribua melhor por todas elas. Assim ninguém se queixará de ter falta de tempo. Sim, assim seria melhor. E as pessoas já poderiam olhar à sua volta sem ter tempo a perder. As pessoas seriam mais pessoas.
Digam-me se esse alguém existe e eu vou lá falar com ele. Urgentemente.

5

5.
Como um pão. E é como se toda a seiva da terra entrasse por mim adentro. A minha saliva é a água da chuva convertida em espuma. Os meus dentes são arados que sulcam a terra e lhe põem o húmus à flor da pele. O meu adubo é o apetite que tenho e faz crescer, na vontade, a fome de outro pão na mesma boca.

6

6.
De que me servem as teorias senão para pensar um pouco e esquecer depois? De que me serve o sofrimento senão para sofrer um pouco e, depois, esquecer que sofri? De que me serve tudo se de tudo me esqueço? Para que existo? Não sei. E não me lembro.

7

7.
O céu é tão grande, visto aqui de baixo. E é maior se nos deitarmos na relva e olharmos assim para ele. Aquele azul todo quase nos cai em cima... Mas se fecharmos os olhos o mundo que vemos é maior. Abarca tudo. Tudo o que se não vê está lá, dentro dos olhos. Vê-se o que se vê e vê-se o que não se pode ver. Se abrirmos os nossos olhos é diferente. Vemos o céu e as árvores que estão à nossa frente, mas não se vê mais nada. Os olhos não vêem para lá daquela montanha ou dentro daquele rio. Por tudo isso, fecho os olhos e vejo tudo o que quero. Sou o comandante do mundo, o mágico que faz nascer das mãos tudo o que deseja. Ser mágico é desejar. Quem deseja é mágico, porque imagina e tem, nesse momento, o fruto das coisas nas suas mãos. Até Deus se pode ter entre os dedos se se desejar. Mas é difícil. Porque talvez ele não queira ser perturbado do seu sono eterno. Deus gosta, afinal, de estar sozinho. Mas não consegue porque está em todo o lado e, por isso, tem sempre companhia. Nem que seja a da luz ou a do silêncio ou a do escuro. Nunca está só, o seu corpo santo. Talvez por isso ele seja assim, triste. E talvez por isso ele se zangue com o vento ou com a chuva que não o deixam descansar em silêncio. E pune os homens. Os homens têm culpa de tudo. São eles que o irritam quando escarnecem dele e dizem que não existe. Quando não têm fé mas têm medo. Deus não os compreende. Eu também não os compreendo: se dizem que não há Deus, então porque têm medo? Não percebo os homens mesmo nada. São criaturas muito estranhas. E recolhidas. Não voam, como as aves, por si. Se o tentam, caem. E isso dói às vezes. Deus não cai porque é ave. Deus não tem medo. Medo de quê e de quem, se ele é tudo e todos? Deus voa. Os homens também deveriam voar, porque são Deus. Mas, porque não voam, têm, à vezes, alguma inveja dele, e, por isso, escarnecem e dizem palavras menos próprias e agem como crianças pequenas: sujam as mãos e depois não limpam a lama que lhes fica entranhada na pele. Os homens pecam e depois sentem-se mal. Mas continuam a pecar. Não percebo. Não percebo mesmo nada.

8

8.
Nunca pedi uma resposta. Nem mesmo para as perguntas que dizem ser mais complicadas. Porque é difícil responder a qualquer pergunta. É difícil dizer o que quer que seja, assim como é difícil respirar. Sim, é difícil respirar quando a questão que nos colocam range no nosso corpo e trememos com medo de errar a solução.Respirar custa-me os olhos da cara, porque me esforço por respirar bem. E os olhos choram quando soluço.Gosto de beber água quando tenho sede. A água dá resposta à minha secura. Por isso, beber água é bom, como é bom responder bem às perguntas que nos fazem. A água cumpre o seu destino e a sede morre.Porque será que se mata a sede?

9

9.
Estou mergulhado no ruído. Há pessoas à minha volta que me falam muito, alto. E fico confuso porque elas não se entendem. Argumentam com palavras rápidas e depois ficam desiludidas se não são compreendidas. Eu não me importo se as pessoas não me compreendem. Compreendo-me. E isso chega. Fico claro comigo quando as minhas palavras são claras e me dizem coisas que eu já esperava. É muito mais difícil falar com os outros. As minhas palavras não são as mesmas que as deles. Não há eco. Não há nada. E as pessoas ficam chateadas e tristes (ou zangadas). Mas não as percebo, porque deveriam ficar alegres com as palavras que a si se dirigem. Às vezes falo sozinho. Isso é bom porque não há discussões. Penso uma coisa e isso basta-me. Pronto. Fico bem mesmo sem as palavras dos outros.

10

10.
Faço pequenas pausas nos meus milagres.
Sou ainda jovem e procuro, sem fugir, todas as coisas que não conheço e penso escuras; todas as pequenas formas. Os movimentos da mão. Enfim, tudo por que uma adolescência tardia se admira.

11

11.
A simplicidade das coisas é o que elas são. Uma coisa é uma coisa. Se alguém houver que diga que ela é muitas coisas, então, é porque essa coisa já não é ela própria. Porque é outras.

12

12.
A montanha é alta, porque eu estou cá, na planície nua, a olhar para ela, lá em cima. Mas se eu subir até ao cimo da montanha alta, então, sou eu a quem a montanha alta diz: «Tu és alto porque eu estou a olhar para ti, aí em cima».
Mas, como lá em cima está frio e eu não posso escrever porque fico com as mãos engadanhadas, prefiro ser baixo e sentar-me na planície nua e olhar a montanha, que não tem frio, lá no alto. E fechar os olhos, pensando estar lá em cima mesmo não estando. E ser pedra com veios de sangue verde e ter pêlos de musgo voltados para o sul a ver o Sol nascer e esquecer que vai ficar noite depois do pôr do Sol. E sentir a música do vento soprando nos meus pequenos cristais de quartzo.
Afago as pernas e os braços e penso ser montanha cá em baixo. Pequena. Mas montanha. Sem tentar explicar como é que isso acontece. Mas acho que isso não será necessário porque me basta estar aqui, e ser montanha. Nada mais: a montanha em mim e eu nela.
Se Deus não me fez montanha a culpa é dele. Também erram, afinal, os entes divinos. Mas eu não me importo, porque se quiser ser montanha sê-lo-ei mesmo que chova. Ou que faça Sol.

13

13.
O meu sono é igual ao das flores que baixam a corola e ficam à espera do dia de amanhã. O meu sono é quando os meus olhos ganham um peso estranho e eu não consigo ver nada. O meu sono acontece a qualquer hora. Porque eu não sei ler o relógio. Dizem que há tempo naquela máquina mínima. Digo mínima porque uma árvore é grande e uma montanha é mais pequena que o céu durante o dia.
O meu sono é esfregar a cara e bocejar dizendo: «Tenho sono». E mais nada.
Mas invejo as árvores que, quando dormem, não se deitam nem tampouco se tapam de cobertores. A sua cama é a terra, os seus lençóis são as nuvens e, por almofada, têm o resto da paisagem. Prefiro o sono das árvores. Por isso durmo ao relento. Para que o meu corpo crie raízes na terra, nem que sejam só umas ervas marcando o lugar do meu repouso.
O meu sono. O meu sono é acordar e ver que o mundo está na mesma, depois de dormir. Cada vez mais na mesma. Porque o Inverno ainda acontece em Janeiro e a água ainda corre nos ribeiros. E, porque, quando tenho sede, bebo água da mesma fonte onde bebi ontem e todos os dias.
Os olhos pesam-me. É o tempo do sono.

14

14.
Estou sentado a uma mesa. Qualquer. Há livros de economia que alguém escreveu com o propósito de dizer que a economia existe. Encontro nestes livros a utilidade do que é inútil. Porque tudo existe e se manifesta e é, sendo, existindo.
Se eu quiser contactar com a economia, não a encontro nos livros, encontro-a no tempo que as árvores levam a crescer, no tempo em que há sede e nos momentos em que prefiro olhar a paisagem e consumi-la em vez de a pensar por palavras. Esta é a minha economia, a minha ciência dos olhos, o porquê dos meu respirar mais apressado quando me admiro com as coisas do Mundo.
Pudera eu ser todas as coisas e fazer-me reflectir no espaço por meio delas; renascer o meu corpo e florir sob todos os orvalhos de todas as primaveras.
Se as minhas palavras fossem verdes, eu seria o mundo. Todo da minha cor. O verde das palavras. O Mundo verde das frases e dos gestos.
Mas a minha posse é não ter nada. O que tenho é o que sou e o que quero ser. Eu e mais ninguém. E esta cor ninguém a quer e ninguém a dá. Por isso, por tudo isso, prefiro as palavras sem cor, que ninguém as conheça, sequer o nome. Nem o corpo, as formas ou a tonalidade do cabelo. Prefiro, sem mais, que o espaço ocupado das coisas tenha a cor que eu quiser delas e, querendo-as assim, e aceitando-as, que eu seja o que elas desejarem de mim. Sem mais.

15

15.
Quando o silêncio é verdadeiro, o mundo vibra. O silêncio faz rodar o mundo. Estremecer. Fá-lo girar, vezes que ninguém conta, à volta dos astros e de si próprio. O Universo está cheio de silêncio. A pigmentação escura do astro sulcado de estrelas é a verdadeira cor desse silêncio, visceral destino das nuvens no outro lado do dia, história fantástica na órbita rente dos planetas em volta de todos os sóis que se não vêem, mas que estão lá, aqui, neste Universo que também é o das trevas, do mar e dos homens.
O silêncio veste-se do dia. Por isso não se vê quando é olhado.
O espaço sem som é o mundo despido, de frente para a Lua, nua também, e sem vergonha. Tem vergonha quem ouve os ruídos e sente neles música transparente revelando o seu corpo desprotegido frente ao espaço, cara a cara com as coisas simples.
Respirar o silêncio é estar calado, é ver crescer uma árvore ou uma manhã e acompanhar o movimento dos ramos e da névoa sem respirar nem fechar os olhos. Ver as coisas crescer é ser as coisas que crescem, é ser como elas. Silenciar o corpo e evoluir.
Levantar-se é crescer em silêncio. É respirar sem suor nem esforço. Levantar-se é ser simples como o Sol: dar luz e ser feliz com isso. Sim. Ser feliz. Ser feliz em silêncio, sem vento nem palavras.
E estar parado?
Estar parado também é ser Sol, e dar luz por isso. Porque ser-se Sol é não se mexer. É ser uma pedra no campo à espera da chuva do inverno, e ser uma pedra no campo à espera do calor de Julho ou de uma mão que nos lance até mais além, para dentro da água daquele ribeiro, ali ao fundo. Ser parado é ser pedra submersa neste ribeiro ou naquele mar que os livros me ensinam. É ser a geografia toda, sendo pedra, é ser todas as palavras, sendo letra.
O silêncio é isto: uma mão que se fecha esperando os dedos dormentes, para se abrir, de novo, projectando os dígitos todos à luz do dia em que isso aconteceu.

16

16.
Se conhecer fosse acreditar eu não creria em nada.
O simples olhar as coisas, o ver, não me basta para conhecer. Devo tocar, cheirar, e tudo o resto, com a intenção única de chegar mais perto. É preciso contactar as células dos objectos e dos factos para os possuir verdadeiramente. E suar ao fazer isso, retirando de nós o que está a mais e recebendo o que evapora dessas coisas.
Conhecer é ler as verrugas na cara. Misturar os sabores, os tons, as texturas plurais do mundo, interiorizar as fobias e a calma quieta da paisagem -- o vento forte e o silêncio da noite.
Há naquela pedra mundos que nunca saberei. Fico triste por isso. Mas revigoro porque conheço outras pedras, que já vi, que já cheirei, que já invadi com os meus sentidos todos, com tudo o que é eu neste corpo. E corrijo-me se a pedra me ensina que me devo corrigir porque é preciso. E revolto-me se a pedra me diz que me revolte.
É bom aprender das coisas o que elas têm para ensinar. É ser-se coisa também. É ser-se ensinado sem regras de homens -- leis -- incompletas e falíveis.
Uma pedra não falha nem se engana. Porque o seu corpo de quartzo é a lição pura que nos fala dos dias e das noites, das chuvas e dos estios, das aves e das marés. Uma pedra é um pequeno mundo onde a areia mais pequena corresponde à mais alta montanha do universo. Se essa pedra é o Universo todo, eu serei pó, do pó desfeito dela.

17

17.
Sou o definidor das substâncias que desconheço, e de todas as outras. Digo: «Isto é assim». E «assim» é, para mim, tudo o que digo assim ser. Se assim não fosse como me definiria?Não posso fingir o que me digo. Ou me invento as definições e, então, a ficção é real, ou tomo verdadeira consciência da verdade daquilo que me digo.Crio, invento, ideologias verosímeis para mim. Onde as vou buscar? Encontro-as no único local possível: nos impulsos desta Mãe Natureza que me envolve. A mim e a ti. Aqui não há a transcendência das coisas. O que é é-o simplesmente, sem argumentos nem falsas estruturas. Uma flor é uma flor, e essa é a ideologia que emana. Um riacho não deixa de ser ele próprio se o idealizarmos como um grande rio. A coisa ideal que ele poderia ser existiria somente se nos iludíssemos. E, ao fazê-lo, pensaríamos uma coisa que está na nossa cabeça e em mais lugar nenhum.Idealizar é pôr tudo dentro da cabeça e transformar, dentro de nós, o mundo verdadeiro em ficção. Idealizar é mentir à Natureza. É quase pecar. É pensar que -- com um mundo já de si perfeito -- há um mundo ou mais mundos melhores. É estar insatisfeito com o que se tem, com o muito que se tem, mesmo que esse muito seja apenas uma fome de mundos novos.

18

18.
Persisto em tentar encontrar a palavra que justifique o destino dos homens e das coisas. Porque me inquieta o facto de as árvores não andarem ou de os cães não terem outra linguagem que não o latido ou os homens não terem outro remédio senão esquecer ou lembrar ou rir ou chorar ou ter frio e medo ao mesmo tempo.
Persisto, talvez, porque sou homem e sofro de medos vários, de sede, de calor ou de frio, de cansaço e pasmo. De saudade de ver tudo o que não vejo neste momento.
Em resposta à minha inquietude tenho a porta fechada de uma mente que é humana e, por isso, limitada. É a porta das dúvidas contínuas que se não abre nunca. A porta dos mistérios insolúveis, guardados em segredo nas arcas de um deus, nunca e sempre misericordioso.
A insaciável vontade de respostas faz nascer em nós a fé nelas. Se não fosse por isso, muito difícil seria a minha existência.
Pergunto-me: «Saber uma árvore não será sabê-las todas?, quem olha para ela não vê tronco, ramos folhas e pássaros nelas? Haverá, assim sendo, sempre, um tronco em cada árvore, ramos, folhas e pássaros que nelas fazem ninho». Com isto fico satisfeito. Mas, o que mais me perturba é a vinda da noite. Quando ela cai sobre os meus olhos ela confunde não só as árvores com as árvores mas as árvores com a montanha, com as flores, as pedras, os caminhos, os ribeiros. Então, quando é noite, tudo é árvores, tudo é flores e riacho ao mesmo tempo. Não posso olhar o escuro e dizer: «Ali está a árvore com folhas, tronco, pássaros». Não posso. Porque não vejo.
O melhor que faço é deitar-me e viver a luz nos meus sonhos. Que são sempre de dia. Aí vejo tudo, e fico satisfeito com o mundo e com as coisas.

19

19.
Notavelmente mais velho. Notavelmente outro. Eis a face pronunciadora de um tempo que passou. As rugas sob os olhos, na testa leve, no maxilar quebrado pela fala e o sorriso.
O cabelo solto e branco, penteado par trás como à procura de um passado sem nome, sem espaço.
Ah, estas rugas. Todo este tempo. Tanto. Tanto o tempo que há. Nem sei quanto. Ninguém jamais saberá.
Cansam-se os olhos e morrem as saudades da saudade. O tempo sobre mim, a chuva, os anos, as memórias. Todos os invernos. Tanto frio que passei e passo ainda. Ainda sinto, ao menos, o frio e o calor. Ou será a minha pele que se contrai sem que eu dê por isso?
Verte-se o silêncio sobre os olhos com o peso dos anos e dos dias. Serei ainda eu quem fala aqui?

20

20.
Reparo que tudo aqui é quieto. Mas esta quietude, este estar parado das coisas, é vivo e crescente.O cheiro da terra, o seu húmus quebrado pelo arado, é a transpiração verde do mundo que vejo ao sair à rua.Os montes, as colinas, tudo sua uma felicidade calma. Eu respiro também, na companhia dos bichos que me olham.A minha mão está submersa no bolso do casaco e não vê as maravilhas que eu vejo. E sinto pena. Porque andar vestido é cegar o resto do meu corpo. É ocultar o mundo à minha pele... Só a minha cara é nua, e os meus pés. São eles quem melhor conhece as cores e a textura das pedras sobre a terra sulcada. São eles os comandantes deste corpo sobre o mundo. O meu rumo é o deles.A minha mão envergonha-se das unhas e lava-se em águas de torneiras. Quando toca, foge. E fico envergonhado do mundo porque ele não foge de mim, embora às vezes esteja longe do lugar onde eu queria estar.

21

21.
Oiço o sino dos homens a esta hora do dia. É o Sol que chama ou são os homens que se envergonham de acordar com o Sol a pino?
Porque ainda é cedo, talvez, o sino toca pouco e desiste. Cada badalada é uma membrana do tempo já vivido e por viver. E o seu eco na montanha são as horas diferentes, são as horas das colinas.
A que horas se levantam as pedras?

22

22.
Agora que o calor está do outro lado do mundo já posso acender uma fogueira. Já faz sentido. Se não tivesse sentido acendia-a na mesma. Porque não é preciso ser razoável e acender uma fogueira só porque o acto de a acender tem sentido. O sentido que há nas coisas é aquele que nós quisermos que haja. Se eu abrir uma janela sem ter razão para isso, é-me igual. Para que eu abra a janela basta-me abri-la. Depois entram o vento, o calor, o frio, a neve, a luz, o que seja, sem que isso seja consequência de uma razão qualquer. Se o vento entrar por esta janela aberta e eu sentir frio, não o posso fazer reconsiderar, porque era assim que tinha de acontecer.
Que culpa tem o vento do frio que eu sinta quando abro a janela? Se eu tenho frio é porque assim tinha de ser. E o vento não tem culpa de eu ficar constipado por isso.

23

23.
O que é a totalidade? O ser-se todo, sem falhas nem ranhuras? O que é a metafísica, para além de ser aquilo que se desconhece?
A totalidade é um rio, com largo caudal depois das chuvas, que vai unir-se, num só corpo, com o mar inacabável. A água doce profanando a água salina do oceano, grande, perturbado, não por isso, com ondas largas dançando infinitamente.
O sexo das águas é a totalidade?
Totalidade de quê?
Ah! Esqueci-me que as palavras foram inventadas pelos homens...

24

24.
Há música em todas as coisas suficiente para tornar inútil a música dos homens.
É preferível escutar o vento, a chuva esbatendo-se contra o solo já húmido, formando poças; pingos de chuva, plurais e únicos. O som da água volante, volátil. O som todo.
Para quê guitarras e bandolins?, Para quê o fado, se o fado é o «destino» orgânico dos seres?, Para quê o ritmo -- os tambores -- se o tempo existe fora deles?, se todo o compasso é natural?
Compasso binário!...
Para quê a divisão do tempo, como dividi-lo, se é indivisível? -- porque sem princípio, porque sem fim.
A música dos homens é a imperfeição pura. E tudo o que é imperfeitamente puro não tem remédio... é perfeito na sua incompletude.
À Natureza deve pertencer a tarefa única e sublime da junção inteira e perfeita dos sons.

25

25.
Pudera eu o mar nas minhas mãos. Quisera eu, ao menos, sonhá-lo. Todo. Invejo-o porque não cabe em mim, ao contrário do meu corpo que cabe todo nele. Submerso e submisso. Húmido humilde, este corpo.
O oceano-mar é muita água para os meus olhos. É muito espaço. Demasiado, para que eu nele me aventure.
Desmaio, de tanta água. Perco o fôlego e o rumo. A minha caravela deambula saboreada por ondas de todas as marés. As suas velas afagam esta atmosfera marítima e azul onde me perco. Os meus olhos afundam-se na noite do mar como as mãos se afundam nos bolsos do casaco marinheiro.
A minha hora é uma âncora recortando as águas, assente num fundo de areia e conchas. O Sol aqui não borbulha, apenas remete as sombras para mais fundo, em baixo. Ondulantes e intocáveis.
O corpo dos homens é na terra barrenta, assente, sedenta, arada e parturiente das árvores e das flores.
Afago a cara e acordo. Do meu sonho uma lembrança: peixes nadando em «terra» de ninguém.

26

26.
Porque não fingir um outro espaço?, um outro riso?, um outro ar que se respire? Porque não um alheamento do mundo objectivo que se vive todos os dias?
Um estado transitório no corpo, uma outra alma e um outro céu.
Os organismos fáceis revigoram na amálgama de dúvidas. Os outros..., os outros surpreendem-se com a luz e morrem sob um sol qualquer que descobriram.
Reescrevo uma esperança perdida. E nela me encontro deficientemente renovado. Perco a minha alma, pois não sinto fluir já o vento que senti quando era minha.
O corpo sem a alma é como os olhos sem a luz ou os pés sem o caminho. Anda à deriva e perde o norte das estrelas. Ganha outro, enganoso, que lhe faz mal à calma do espírito.
É assim o meu corpo nesta hora: destinado à deriva eterna, caso a alma não lhe flua aos olhos.
Fico impaciente com a demora e, enquanto espero, faço das palavras o meu caminho bussolado. Os meus sentidos lêem na folha branca as frases escritas ainda não decalcadas. Mas é mais dos olhos que me queixo, é mais desta paisagem em falta que me lembro, destas ervas e destes passos de areia quando a terra é quase mar, de tudo o que não vejo e sinto que me falta.
Quando dou por mim com as mãos escorrendo as faces -- e me lembro daquilo já perdido -- revogo o desejo de uma sede perdida e morta. Porque a sede que matei não é a mesma fome de água que tive ontem. Foi sede passageira que esqueci e, agora submersa num organismo sem alma, de nada lhe vale o prazer que fez sentir a quem dela se saciou.

27

27.
Há horas em que a minha consciência não me pertence. Não sou seu dono. Sou, sim, seu comandado obediente e subjugado. Quando assim é não sou eu quem por mim age, que por mim se movimenta. Entro num transe seduzido e sem retorno.
É quando a noite se faz ao mundo e se ouvem uivos de lobos mansos ao longe, ecoando na gândara sob o corpo da lua.
Estar vivo, nesses momentos, é não sentir que se vive, é respirar sem consciência disso, é estar sentado diante de uma parede e imaginar o mundo em movimento nela. Estar vivo, então, é ter os olhos fechados e ver perfeitamente. Perfeitamente. Assim como quem olha e vê.
Estar vivo é ser constante como as pedras, móvel como as águas, seguro como as árvores ou as montanhas, e despejar a mente de tudo o resto, em equilíbrio.

28

28.
Amargamente me apercebo da hora tardia em que acordei. Até então vivi em sonhos. No paraíso de uma consciência liberta. Prazeres agora findos.
Já não há lugar para vícios inoportunos e excessivos.
Revejo a minha cara no espelho verdadeiro do mundo: este sou eu!, o ilusionado, o visionário acordado fora de tempo, o sonhador-poeta enovelado nas palavras mansas e arredias de tudo o que é vil e humanamente insustentável.
Não mereço nada do que tenho. Sanguessuga desde que nasci, até agora. Os meus olhos, agora (tarde) bem abertos, nada enxergam. A cor que vêem nas coisas é só sua, ficção ocular e frágil, mesmo assim.
Desfaleço. Ninguém me acode.
Há muito que não estava só.

29

29.
Porque se inventou o oriente? e as estações e o norte? Não nos basta, não basta aos homens, ver o Sol nascer e orientarmos os passos por onde ele vai. É sempre preciso inventar coisas humanas!
Prefiro nada saber dos números a saber alguma coisa deles. Não preciso deles e eles não precisam de quem eu sou.
Os meus números e letras são a quantidade de pétalas que vejo nesta flor ou as muitas ervas que admiro espalhadas por este outeiro abaixo.
Onde vivo não há número de porta. Não há morada. Porque a haveria de ter? Moro aqui, e quem me conhece sabe onde vivo sem precisar conhecer o endereço. É inútil, como quase tudo.
Moro onde me deito: nos descampados, nos vales, sobre a relva rasteira. A minha morada é onde eu estou, onde sei que existo e preciso estar.
Sou deste e doutros mundos.
Quem me quiser escrever mande uma carta para aquela estrela. Estarei lá, como estarei em todas as outras ao mesmo tempo.
Aquela casita branca é simplesmente o lugar onde me deito mais. É onde acordo dos meus sonhos. Estar nela é estar no mundo. Porque aquela casita branca é o mundo, pintado e com janelas.

30

30.
Esqueço-me, por vezes, que as palavras não dizem tudo o que queria delas, e acredito, sem querer, naquilo que dizem.
Preferia ser árvore e não saber para que serve a linguagem, e ser só árvore simples.
Tudo na Natureza (que não é dos homens) sobrevive no silêncio. As palavras são o artifício que tornou os homens hipócritas e estúpidos. Se uma flor vive sem palavras, sendo só flor e mais nada, também o homem deveria viver em silêncio e escutar por ele todas as mensagens paridas da Natureza.

31

31.
Se tudo o que existe estivesse à frente dos meus olhos então eu conheceria o mundo todo. Mas, como tal não acontece, e eu só vejo as poucas coisas que vejo, então, prefiro imaginá-las. Posso olhar este pequeno riacho e pensar todos os pequenos riachos do mundo. E, com isto, todas as outras coisas.
Por isso posso dizer que tudo está à frente dos meus olhos, porque tudo é em mim nesse momento. Sou todas as coisas. Mas não sou Deus. Ser Deus é não pensar em nada, porque já se pensou tudo.
Eu sou o oposto ao divino. Tudo o que vejo é novo aos meus olhos. Cada sopro de ar é um novo vento, cada gota de água caída das nuvens é chuva nova que nunca conheci. Por isso espero as chuvas de Inverno e quero reconhecer nelas a novidade: porque é outra chuva e eu sou outro que ontem não fui e que no próximo Inverno não serei.

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32.
Viver é estar acordado e sentir que o Sol se mexe por cima da minha cabeça. Sentir que a chuva molha de maneira diferente a terra, chão que piso.
Viver é pensar que se tem fome ou sede e sentir a fome e a sede como um relógio orgânico dentro do corpo.
Viver é saber que se está acordado mesmo quando fecharmos os olhos e dormimos sentindo a macieza de uma almofada amparando a cabeça.
Estar vivo é a forma mais fácil de viver. Mesmo em sonhos.

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33.
Penso a imensidade toda. Penso o silêncio. Oiço o calar de tudo o que é calado. Encontro-me com a totalidade, com um universo que não fala comigo, com a imensidão calada das coisas. E fico só. Nesse momento encontro a minha face outra, o meu eu que não conheço e não desvendo, porque calado, também ele. Fico ainda mais só. Todo. Eu. Só, eu todo. E adormeço. E finjo ser então calado também no meu sono. Finjo-me enquanto não sei quem sou ou o que desvendo.
A imensidão toda que pensei perde-se nesse pecado de fingir, nessa fronteira entre um bem e um mal que não conheço, mas que sinto, paredes meias com a minha consciência do que é bem para mim e do que é mal para comigo.
Transfiguro-me no sonho e sinto um cheiro inválido e perene de nevoeiros oníricos que me fazem submisso de si. Perco-me, também, por isso. Porque não sei o caminho de volta. Porque não sei se é labirinto ou terra plana e limpa esta que piso. Porque já não sei qual o momento de acordar.

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34.
Sinto cansados os olhos. Reparo que me transportam para outros lugares, para outros escuros. Uma ligeira névoa. Cansaço. Um comprimido. Brota de mim esta insónia vigilante que não me larga. Que me fere, deixando-me vivo pela noite dentro. Olhos abertos, mente fechada, procuro num livro qualquer e um embalo do sono, um seu engano, uma rasteira.
Sento-me sobre a indiferença dos móveis. Apoio mãos e braços sobre coisas que não sei profundamente. Tacteio o espaço em volta sem respostas. Só o silêncio me acompanha, perturbado de vento e ruídos vários vindos da fundura de movimentos de mim desconhecidos. Sim. Desconhecidos de mim. E outras coisas.
Levanto-me e vagueio pelo quarto procurando uma brisa que saia de mim. Nada encontro. Não sou o mar nem as árvores, reconheço. Mas sei que o mar e as árvores e tudo o que se move e faz ruído estão em mim. Porque sou eles, sendo eu. E porque eles são eu, enquanto eles.
Confundo-me a cada passo e a cada gesto que profiro. Os meus olhos vagueiam por um sono elástico que não cede, que não verga à força de cansaço. Estão contra mim estes meus olhos. E reconheço já uma cegueira futura que invadirá os meus dias de senilidade. E tenho medo. Horas estranhas para pensar no futuro. Amanhã, talvez fosse melhor.

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35.
A água onde lavo as mãos está fria. Um arrepio todo me percorre, e estremeço pensando nas aves que dormem ao relento. E que se lavam nas águas das ribeiras e que não se arrepiam por isso. Furioso, levo as mãos à cara e todo me encharco. Quase desfaleço com tremores. Sinto inveja dos pássaros e resigno-me à condição de homem com que nasci.
Oiço uma orquestra de flautas e o arrepio volta. O sopro, o vento, a água fria que escorre dos beiços de quem sopra. E o arrepio.

Soalheira, 1989/90